Por Alan Sampaio Campos e Daniel Rivera Theilkuhl
SUMÁRIO
- Introdução.
- A Teoria do Fato Jurídico.
- Analogia à Teoria Tridimensional do Direito
- Superação da Dicotomia Fato Social e Jurídico.
- A Funcionalização do Fato Jurídico.
- Considerações Finais.
- Referências bibliográficas.
Novo Item
1. Introdução
Após a promulgação da Constituição Federal da República de 1988, o Direito Civil vem sofrendo grandes transformações advindas da elevação da pessoa humana ao topo do ordenamento jurídico1, fazendo com que a visão patrimonialista outrora prevalente cedesse lugar para uma ótica existencialista nas relações privadas.
Esta mudança impulsionou a necessidade de revisitar os institutos jurídicos clássicos de maneira a interpretá-los de acordo com os valores e princípios constitucionais. Este fenômeno foi denominado pela doutrina de constitucionalização do Direito Civil, o qual tem como premissa a prevalência do “ser” sobre o “ter”2, de modo a privilegiar as situações existenciais em detrimento das patrimoniais.
Encontra-se, neste ambiente, um dos institutos jurídicos mais tradicionais no direito civil, a “teoria do fato jurídico”, sendo certo que no cenário jurídico contemporâneo, a interpretação e a aplicação deste instituto deverão ser observadas sob um olhar renovado, afastando a tradicional perspectiva patrimonialista existente no momento da sua construção.
Com efeito, verifica-se que, nesta atmosfera de transformação, o jurista terá que reconstruir os ditames da teoria do fato jurídico sob a perspectiva civil-constitucional, compatibilizando os seus preceitos originais com os valores constitucionais.
2. Fato jurídico. Conceito. A teoria do fato jurídico
Para os civilistas clássicos, o fato jurídico é notado pela produtividade dos seus efeitos. Neste sentido, Francisco Amaral dispunha que fatos jurídicos são “acontecimentos que produzem efeitos jurídicos, causando o nascimento, a modificação ou a extinção de relações jurídicas e seus direitos”3.
Entretanto, a análise do fato jurídico sob o prisma da produção dos seus efeitos não parece ser a mais adequada, haja vista que um fato jurídico pode não chegar a produzir seus efeitos efetivamente, apesar de possuir capacidade para tanto.
Seguindo esta linha de pensamento, Pontes de Miranda conceituou o fato jurídico como “o fato ou o complexo de fatos sobre o qual incidiu a regra jurídica: portanto, o fato de que dimana, agora, ou mais tarde, talvez condicionalmente, ou talvez não dimane, eficácia jurídica”4.
Parecendo seguir a mesma concepção traçada, Pietro Perlingieri dispõe que “fato jurídico é qualquer evento idôneo, de acordo com o ordenamento, a ter relevância jurídica”5. No entanto, o aludido jurista acrescenta ao raciocínio delineado que todo fato é juridicamente relevante, independentemente da produção de efeitos6. A fim de clarear este entendimento, o jurista cita que o simples fato de um indivíduo andar numa rua constitui um fato juridicamente relevante, tendo em vista o exercício da liberdade de circulação, valor constitucionalmente protegido (art. 5º, XV, CF)7.
Como se verá adiante, a concepção do fato jurídico definida por Perlingieri parece coadunar-se mais adequadamente ao direito civil contemporâneo, pois quanto mais ampla for a abrangência do fato jurídico, maior será o reconhecimento da tutela nas situações jurídicas. Esta perspectiva decerto facilita a compreensão de que o direito civil deve ser interpretado à luz dos valores constitucionais.
Contudo, diante das fortes raízes na concepção patrimonialista e individualista que o direito civil possui, a visão acerca do fato jurídico tem, por vezes, se restringido ao texto da lei sem observar o ordenamento de forma unitária e, consequentemente, limitando a tutela jurídica.
Neste sentido, a denominada “teoria do fato jurídico”, criada por Pontes de Miranda, parece fortalecer a lógica formalista, dificultando a ampliação do alcance do exame do fato jurídico. O aludido jurista sintetizou o processo pelo qual o fato ingressa no mundo jurídico da seguinte forma:
A regra jurídica é norma com o que o homem, ao querer subordinar os fatos a certa ordem e a certa previsibilidade, procurou distribuir os bens da vida. Há o fato de legislar, que é editar a regra jurídica; há o fato de existir, despregada do legislador, a regra jurídica; há o fato de incidir, sempre que ocorra o que ela prevê e regula8.
Percebe-se, com efeito, que Pontes de Miranda dividia o mundo dos fatos e o mundo jurídico. Em suma, a teoria ponteana dispõe que (i) a regra jurídica (norma jurídica) contém uma hipótese fática, (ii) a hipótese fática surge no mundo dos fatos, (iii) há a incidência9 da norma jurídica sobre a hipótese fática, surgindo o fato jurídico. Ou seja, a regra jurídica assinala o que deve entrar no mundo jurídico. Se não há regra jurídica, aquele fato não ingressará no mundo jurídico.
A fim de ilustrar a lógica da teoria proposta, cumpre trazer, como exemplo, o processo fenomenológico decorrente do nascimento de uma criança. O art. 2º do Código Civil10 versa sobre a hipótese fática (o nascimento). Quando esta hipótese fática acontecer, incidirá a norma jurídica e, por consequência, surgirá o fato jurídico.
Todavia, a visão tradicional do fato jurídico leva ao entendimento de que podem existir fatos irrelevantes, afastando, portanto, determinadas situações da pretensão de tutela jurídica, o que contraria a perspectiva civil-constitucional como já mencionado alhures.
Outrossim, não obstante o valor histórico da concepção ponteana, o sistema jurídico contemporâneo é unitário, composto por regras jurídicas, mas, especialmente, por princípios jurídicos11, motivo pelo qual não é possível interpretar uma regra jurídica sem levar em consideração todo o ordenamento jurídico, notadamente os dispositivos constitucionais.
Ademais, a separação entre o mundo dos fatos e mundo jurídico denota uma visão ultrapassada do direito civil, baseada numa visão estática da relação jurídica e calcada no método subsuntivo de interpretação12, critério inapto a promover a tutela jurídica e alcançar os objetivos constitucionais.
De toda forma, não obstante a necessidade de releitura dogmática da teoria do fato jurídico, a sua classificação ainda possui relevância no ordenamento, visto que capaz de solucionar diversos problemas jurídicos.
2.1. A Classificação do Fato Jurídico
Fatos jurídicos são os eventos que decorrem da natureza (fatos naturais) ou da vontade humana (fatos humanos), capazes de produzir efeitos jurídicos.
Por conseguinte, os fatos jurídicos são classificados em fatos lícitos (conforme o direito) e fatos ilícitos (contrários ao direito). A inserção do fato ilícito como ato jurídico é criticada por parte da doutrina, sendo oportuno pontuar que o fator responsável pela classificação foi a relevância do evento para o direito e não o grau de conformidade com a ordem jurídica13.
A teoria do fato jurídico possui duas perspectivas para sua classificação, as quais se baseiam na presença ou não da ação humana. Portanto, o elemento volitivo é o fator de distinção para constituir esta categoria jurídica.
Os fatos naturais são denominados fatos jurídicos strictu sensu e dividem-se em ordinários e extraordinários. O primeiro trata dos acontecimentos comuns, esperados (nascimento, morte, maioridade, decurso do tempo), enquanto o segundo se caracteriza pela imprevisibilidade ou inevitabilidade (terremoto, enchente, caso fortuito e força maior).
Sobre os fatos humanos, ou seja, aqueles oriundos da vontade humana, a teoria traz o ato jurídico em sentido amplo (ato jurídico lato sensu), ramificando esta categoria em ato jurídico strictu sensu e negócio jurídico. Ainda, ao lado do ato jurídico lato sensu, parte da doutrina adota o ato-fato como a terceira categoria da classificação mencionada.
Neste sentido, o ato jurídico strictu sensu14 trata-se daquele em que, apesar do elemento volitivo para a prática do ato jurídico, seus efeitos são preestabelecidos pela legislação (reconhecimento de paternidade, adoção, fixação de domicílio, quitação) ou por negócio jurídico preexistente (forma de pagamento, multas pecuniárias)15. De outra banda, o negócio jurídico possibilita que as partes definam a produção dos efeitos jurídicos mediante a regulamentação dos seus interesses (contrato de compra e venda). Percebe-se, então, que o ato jurídico strictu sensu e o negócio jurídico têm em comum a necessidade de exteriorização da vontade pelo agente, distinguindo-se em razão da escolha acerca da produção ou não dos efeitos do ato jurídico.
Por derradeiro, a categoria de ato-fato16, embora seja elencada na subdivisão do fato humano, a declaração de vontade não tem importância, sendo dispensado o elemento volitivo, uma vez que a produção dos efeitos ocorre por conta da norma jurídica. São exemplos clássicos de atos-fatos, a ocupação e o achádego.
3. Analogia à Teoria Tridimensional do Direito
No estudo da introdução à ciência do direito é comum deparar-se — quando da conceituação do direito em si17 — com a teoria tridimensional do direito, linha doutrinária impulsionada pelo jurista Miguel Reale. Para fins do presente estudo, vale-se de tal pensamento para importar seu conceito central para o âmbito da definição do fato jurídico.
Devemos entender, pois, que o Direito se origina do fato, porque, sem que haja um acontecimento ou evento, não há base para que se estabeleça um vínculo de significação jurídica. Isto, porém, não implica redução do Direito ao fato, tampouco em pensar que o fato seja mero fato bruto, pois os fatos, dos quais se origina o Direito, são fatos humanos ou fatos naturais objeto de valorações humanas18.
De acordo com a teoria tridimensional do direito, como a própria expressão se encarrega de esclarecer, haveria, no mundo do direito, três dimensões essenciais, quais sejam: o fato, o valor e a norma. O direito é verificado justamente em decorrência da constante dialética entre esses três elementos. De acordo com o próprio Miguel Reale, “poder-se-á dizer que o Direito nasce do fato e ao fato se destina, obedecendo sempre a certas medidas de valor consubstanciadas na norma”19.
Nesse sentido, fica claro que a teoria tridimensional se opõe a outras linhas de pensamento ao definir que o direito não é somente norma (como pensavam os positivistas clássicos), não é somente valor ou princípios morais (como defendiam os jusnaturalistas) e tampouco representa meramente um fato (na linha defendida pelos marxistas e economistas clássicos, que entendiam o direito como um fato decorrente do convívio social). Para a teoria tridimensional, onde quer que haja um fenômeno jurídico ou social há, necessariamente, um fato subjacente; um valor que confere um significado a esse fato; e, por fim, uma regra ou norma, que representa a relação que integra o fato ao valor. Sendo assim, antes de pensar na influência da dimensão normativa, fica evidente que fatos e valores se dialetizam diuturnamente.
Miguel Reale, ao tratar da estrutura tridimensional do direito, reitera que:
Fato e valor se correlacionam de tal modo que cada um deles se mantém irredutível ao outro (polaridade) mas se exigindo mutuamente (implicação) o que dá origem à estrutura normativa como momento de realização do Direito20.
Dessa forma, entende-se que não só seria plenamente possível, como necessário, transportar a ideia central inculcada na teoria tridimensional do direito para a realidade e definição dos fatos jurídicos. Isso porque, em última análise, a classificação de determinado evento ou acontecimento como fato jurídico tem, como principal consequência, promover a aberturado mundo do direito e dos regramentos e proteções por ele previstos.
Ora, sob uma lógica do direito civil-constitucional, em que se deve valorizar a preservação e promoção das liberdades individuais21, é importante ter a noção de que todo e qualquer acontecimento está sujeito à incidência de diversos valores. Como consequência dessa valoração, tal acontecimento seria alçado à categoria de fato jurídico. Nos próximos itens busca-se aprofundar essa noção, em especial, quando abordado o perfil funcional da teoria do fato jurídico.
4. Superação da Dicotomia Fato Social e Jurídico
Antes de se adentrar no tema específico deste item, é importante fazer uma breve, porém relevante digressão a alguns temas aqui já mencionados. Adotando-se a teoria clássica a respeito dos fatos jurídicos (tão difundida na doutrina) é possível afirmar que haveria fatos jurídicos irrelevantes, isso porque é uma linha doutrinária que se baseia na ideia de um ordenamento construído apenas por regras e não por princípios. Para os adeptos de tal doutrina, o beijo de um casal, por exemplo, seria um fato irrelevante, ao passo que a manifestação de vontade do casal em contrair matrimônio e a efetiva celebração do casamento seria um clássico fato jurídico, uma vez que o suporte fático para tal evento está previsto em lei.
Tal pensamento não se coaduna com a metodologia civil-constitucional e com o pensamento defendido por Pietro Perlingieri — fato jurídico seria qualquer evento idôneo a ter relevância jurídica —, ao qual adere-se neste breve estudo. Na realidade, não há de se falar em fatos irrelevantes, mas sim em fatos e não fatos. Explique-se: todo fato seria relevante (até mesmo o beijo do casal), pois, ainda que não estivesse predeterminado a ter eficácia no mundo jurídico, representa em si mesmo a realização de um valor ou de um princípio protegido pela ordem civil-constitucional (no caso do beijo, este seria um fato jurídico “relevante”, uma vez que representa o pleno exercício da liberdade afetiva do casal). Por outro lado, no caso do clássico exemplo de Pietro Perlingieri da respiração da formiga, estar-se-ia diante de algo que simplesmente não seria um fato22.
Assim, para a ciência jurídica, fatos seriam aqueles que invocam a ideia de convivência entre os indivíduos ou da relação com o outro — não existiriam fatos irrelevantes, simplesmente não haveria fatos. Fica nítida a crítica à doutrina tradicional a respeito dos fatos jurídicos. Na realidade atual, todo fato da realidade social acaba por representar um fato juridicamente relevante na medida em que consubstancia o exercício de um direito ou princípio constitucionalmente assegurado23. Defende-se, portanto, a ideia de superação de uma dicotomia entre os chamados fatos jurídicos e fatos sociais.
O fato para o direito possui uma conotação prática que exige a presença da ideia de convivência, já que, em última instância, refere-se à vida em comunidade (no sentido de todos serem habitantes do mesmo planeta). Sendo assim, todo fato considerado como social interessa diretamente ao direito, pois nele reside uma potencialidade de interferência no convívio social.
Os fatos sociais têm sempre relevância jurídica porque toda a atividade social interessa ao direito. Podem ter, ainda, eficácia se o ordenamento lhe reserva um efeito jurídico individualizado, consubstanciado na criação, modificação ou extinção de uma situação jurídica subjetiva. Passear por um terreno é um fato juridicamente relevante; adquiri-lo por meio de um contrato é fato juridicamente relevante e eficaz na medida em que cria uma situação jurídica subjetiva (direito de propriedade). Assim, todo fato social é juridicamente relevante, ainda que não seja necessariamente eficaz. É com essa advertência em mente que se deve examinar a classificação dos fatos jurídicos24.
No mais, é importante ressaltar que todo fato social é percebido de acordo com a compreensão cultural de determinada sociedade em certo momento histórico devendo também, portanto, ser valorado pelo direito25. Aqui faz-se uma breve remissão ao item anterior em que se menciona a teoria tridimensional, apenas para reforçar a importância da dimensão valorativa para fins da verificação e entendimento de determinado fato, de modo a conferir-lhe o tratamento mais adequado do ponto de vista da lógica civil-constitucional. A ideia é não olvidar que os valores não são estáticos, devendo ser observada a sua historicidade26 a fim de moldar e ajustar a qualificação do fato jurídico conforme o momento de sua apreciação.
Sendo assim, não haveria qualquer distinção entre fato social e fato jurídico. Todo fato social seria jurídico, porquanto relevante para o direito27. Como se viu, aqui deve se entender a utilização da expressão “jurídico” como sinônimo ou reflexo da relevância do fato para o direito, e não necessariamente da eficácia jurídica daquele determinado fato ou até mesmo de sua conformidade com o ordenamento. Assim, pode-se resumir que “fato social é o acontecimento que, submetido à incidência do direito, torna-se, tecnicamente, fato jurídico”28.
Sempre importante recordar que um mesmo fato poderá ter diversas qualificações a depender da perspectiva sob a qual ele é visto. No caso da mulher grávida, por exemplo, sob a perspectiva da própria mulher, representa o exercício de sua liberdade traduzida na maternidade, sob a perspectiva da relação de trabalho, é um fato que gera prerrogativas para a mulher de modo a garantir sua estabilidade no emprego, e, por outro lado, é um acontecimento que tem efeitos para fins sucessórios, por exemplo29.
5. A Funcionalização do Fato Jurídico
Tradicionalmente, o fato jurídico sempre foi e é estudado sob o seu perfil estrutural, isto é, priorizando a descrição dos fatos como eles são e buscando seu enquadramento nas hipóteses fáticas já traduzidas no ordenamento, nas regras jurídicas. Ocorre que a consideração dos institutos jurídicos apenas sob sua lógica estrutural nas situações fáticas concretas acaba por gerar iniquidades30, pois, quando da sua análise, não há a preocupação ou o cuidado em se considerar o contexto histórico, cultural, social e econômico em que se encontram inseridas e os valores ali representados. Em uma análise puramente estrutural não se consideram os valores e interesses em jogo naquele determinado caso concreto. Ao fazer essa análise superficial é natural que, ao aplicar este ou aquele regramento (com base apenas na estrutura do fato), acabe se chegando a uma conclusão menos benéfica à parte ou partes envolvidas.
Na lógica da escola civil-constitucional, o que se busca justamente é a análise dos institutos jurídicos sob seu aspecto funcional. Isto é: busca-se a superação da lógica patrimonialista em benefício da lógica existencial, com a valorização, sobretudo, da dignidade da pessoa humana, que será encontrada na análise das funções e qualificação dos institutos31. No caso do fato jurídico, sua função é encontrada mediante a análise e síntese de seus efeitos essenciais, pois é a partir dessa síntese, da verificação de sua função concreta, que se poderá qualificar aquele determinado fato. Nas esclarecedoras palavras de Antônio dos Reis Júnior:
Com efeito, a grande importância atribuída ao estudo do fato jurídico reside, especialmente, no reconhecimento de sua função nuclear, correspondente à possibilidade de tutela jurídica dos acontecimentos da vida e da natureza, porquanto se constitui como o único meio e porta de entrada para o mundo do direito. destarte, quanto maior a amplitude ou espectro de abrangência do fato jurídico, tanto maior será o reconhecimento e tutela das situações jurídicas subjetivas32.
Como já antecipado acima, a ideia da existência de simples fatos, que, por si só, não seriam capazes de produzir efeitos jurídicos, colocaria tais fatos em um campo do não direito, ou seja, haveria situações jurídicas subjetivas que estariam fora do alcance do direito e, portanto, fora da possibilidade de serem passíveis de merecimento de tutela pelo ordenamento jurídico. Ressalte-se que, nos dias de hoje, ainda mais considerando-se o infinito espectro de possibilidades dentro da convivência social, é inimaginável se pensar em situações simples do dia a dia que não estejam abarcadas pelo direito. Na linha do pensamento já traduzido acima (beijo e casamento), não há como não considerar que, por exemplo, o mero fato de um indivíduo acessar um site de buscas em seu computador não seja um fato a ser considerado pelo direito. Além do exercício da liberdade pessoal, ainda incidem sobre esse simples fato todos os corolários que se encontram em voga referentes à intimidade, privacidade e proteção de dados.
Na lógica do direito civil-constitucional, na realidade, todo fato social é fato jurídico e, portanto, de certa maneira, merecedor de tutela. Há, portanto, uma proposital ampliação do conceito de fato jurídico, de modo a permitir o alcance, pelo direito, de um maior número de acontecimentos e eventos do cotidiano, gerando como consequência direta, uma maior proteção, promoção e tutela dos direitos fundamentais.
Tudo isto significa nada mais que uma revolução metodológica na teoria do fato jurídico. Antes de identificar como é determinado fato (estrutura), deve-se compreender para que ele serve (função), ou, por outras palavras, qual a sua razão de ser. E para isso, faz-se imprescindível superar a técnica da subsunção, como máxima manifestação do formalismo jurídico, de modo que a função do fato jurídico, como apreensão de seu significado normativo, deva ser identificada segundo uma valoração do fato e de seus efeitos, em uma operação interpretativa única, que o interpreta e o qualifica ao mesmo tempo, de acordo com as regras e princípios de todo o ordenamento jurídico, em sua unidade e complexidade, obedecida a heterogeneidade das fontes e a hierarquia dos valores extraídos do sistema jurídico como ordem axiológica de princípios fundamentais. Não se pode olvidar que para atingir este escopo, ou seja, identificar a função do fato jurídico, é inelutável passar da consideração estática dos eventos a uma consideração dinâmica de todas as circunstâncias que os envolvem em um determinado espaço e tempo.33
O ponto mais relevante é entender o fato jurídico como o primeiro motor capaz de acionar a engrenagem jurídica34. Aqui, novamente, recorre-se à ideia da teoria tridimensional, pois, de certa maneira, os próprios conceitos de direito e fato jurídico se confundem nesse ponto específico referente ao ingresso de determinado evento ou acontecimento no mundo do direito. Nesse sentido, torna-se óbvia a análise funcional do fato jurídico de modo a permitir que todos os fatos — traduzindo seus respectivos valores fundamentais — possam ser alcançados pelo direito. Esse entendimento representa a superação da visão tradicional de que o fato jurídico seria apenas o suporte fático (a hipótese) prevista em lei e que os demais fatos da vida seriam fatos sociais ou irrelevantes.
Sendo assim, ao adotar-se essa visão funcional a respeito da teoria do fato jurídico, percebem-se alguns impactos na própria classificação dos fatos jurídicos estabelecida por Pontes de Miranda35. A grande questão é que, a partir do momento em que se passa a analisar o fato sob seu perfil funcional, ao invés do estrutural, a classificação tradicional começa a perder, de certa forma, sua razão de ser, uma vez que se encontra enraizada no aspecto estrutural do fato.
Dito de outra forma, superando-se a técnica da subsunção, a função passará a definir e a moldar qual o regramento jurídico adequado a ser aplicado em cada caso concreto36.
Em outras palavras, preconizar-se a necessidade de alargamento paulatino das possíveis situações abarcadas pelo suporte fático abstrato somente mantém o velho discurso da subsunção, visando a norma jurídica “colorir” um mundo cujas cores são sempre infinitamente maiores do que os rígidos textos legais podem prever. Cores que só o intérprete é capaz reproduzir com precisão, sem nunca se posicionar de costas aos fatos, excluindo aqueles que nele vivem. Realidade à qual somente se pode responder com justiça através do preenchimento dos conceitos jurídicos abstratos pelos valores expressos na normativa constitucional, os quais cada dia mais espelham a riqueza de sua complexidade37.
Apoia-se aqui no exemplo trazido por Antônio dos Reis Junior ao tratar da figura do pagamento38. A figura do pagamento pode ser enxergada justamente em uma “zona cinzenta” criada na lógica da classificação dos fatos jurídicos, em virtude da análise funcional dos fatos ou acontecimentos do dia a dia. A figura do pagamento pode estar traduzida na lógica do pagamento de uma dívida ao qual o devedor estava vinculado desde o surgimento da obrigação. Ao realizar o pagamento nesse caso, ao devedor serão aplicados os efeitos de liberação da obrigação previstos pela própria lei ou pelo negócio jurídico originário da obrigação. Ou seja, se está diante de um exemplo clássico de ato jurídico em sentido estrito, cujos efeitos, de antemão, encontram-se previstos em lei ou em negócio jurídico. Em outro cenário, poderia identificar-se um pagamento em ambiente de negociação para liberação do devedor por via alternativa – a chamada dação em pagamento. A dação em pagamento também possui o efeito liberatório ao devedor, conforme previsto em lei, no entanto, o conteúdo da prestação que será levada a cabo (distinta da prestação originalmente avençada) pode ser objeto de modulação, atraindo, portanto, para este ato específico as características peculiares aos negócios jurídicos, ainda que, o ato em si, do ponto de vista estrutural, tenha as características de ato jurídico em sentido estrito. No final das contas, o que se está avaliando é a função desempenhada pela figura do pagamento a partir de sua qualificação no caso concreto.
Nesse ponto, adverte Anderson Schreiber:
Verifica-se que, quanto maior o papel da vontade do agente na gênese dos efeitos jurídicos, mais intenso o controle imposto pela ordem jurídica sobre o ato gerador. Daí a exaustiva disciplina do negócio jurídico, o tratamento residual do ato jurídico em sentido estrito, e a previsão puramente pontual dos atos-fatos. No entanto, se o objetivo é propiciar um controle adequado aos atos humanos, a categorização utilizada, em que pese sua importância didática, peca pelo caráter exclusivamente estrutural, o que fica evidenciado pelas intermináveis controvérsias doutrinárias acerca da qualificação a ser conferida aos mais diversos atos, refletida na insegurança quanto à determinação do regime aplicável. Como adverte Gustavo Tepedino, “somente a interpretação funcional, ao fotografar o regulamento de interesses em seu todo, de modo a compreender o ato e suas circunstâncias, inserido na atividade a ser analisada, permitirá qualificá-lo e estabelecer a disciplina aplicável39.
Dessa maneira, é justo concluir que a funcionalização do fato jurídico é um verdadeiro instrumento de promoção e garantia de direitos fundamentais previstos constitucionalmente, resumindo-se, em linhas gerais, aos seguintes aspectos: (i) individuação da norma mais compatível com os interesses e valores em jogo; (ii) integração dos efeitos do fato, de modo a se verificar sua síntese e que, em última instância, levará à verificação de sua função; (iii) superação da técnica da subsunção, que considera apenas o perfil estrutural dos fatos, a partir dos suportes fáticos previamente determinados em lei; (iv) unidade do sistema, como fato de reconhecimento de um ordenamento centrado na valorização da dignidade da pessoa humana e na busca pela realização dos demais princípios constitucionais; (v) a interpretação e qualificação do fato de acordo com sua efetiva função (síntese dos efeitos essenciais); e (vi) a remodelação do papel da autonomia privada, passando a ser promotora dos direitos e princípios fundamentais.
6. Considerações Finais
Percebe-se que a concepção do fato jurídico e a construção de sua teoria devem ser relidas, visto que concebidas, historicamente, num modelo positivista, em que a visão patrimonialista e individualista prevalecia no ordenamento jurídico.
Na ordem jurídica contemporânea, não faz mais sentido a divisão entre o mundo dos fatos e o mundo jurídico, haja vista que o sistema jurídico não é composto apenas por regras, mas notadamente de princípios que, de forma substancial, traduzem os valores constitucionais40. Nesta perspectiva, a interpretação do fato não deve considerar somente a existência de uma regra predeterminada, mas de todo o sistema jurídico, de maneira a tutelar e promover os princípios constitucionais. Noutras palavras, a Constituição unifica o ordenamento, tornando o sistema unitário e impedindo a interpretação isolada da norma.
Nesta linha de raciocínio, resta indispensável a superação da técnica da subsunção de maneira privilegiar o perfil funcional do fato jurídico ao invés da análise meramente estrutural construída pela teoria ponteana. Ademais, é certo que o operador do direito não pode manter-se apegado à necessidade de regulamentação legislativa para alcançar a tutela jurídica, uma vez que o dinamismo da sociedade, especialmente impulsionado pelo avanço tecnológico, não condiz com essa atitude. Afinal de contas, nas palavras de Perlingieri, “o ordenamento vive dos fatos que historicamente o realizam”41.
Importa registrar que a teoria do fato jurídico ainda tem relevante importância no ordenamento brasileiro, sendo certo que há necessidade de reconstruí-la, sob a perspectiva funcional do fato jurídico, de modo a valorar todo o ordenamento, com o escopo de concretizar a tutela jurídica da pessoa humana e atingir o objetivo solidarista constitucional.
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[1] (…) a Constituição Federal, ao contrário, pôs a pessoa humana no centro do ordenamento jurídico ao estabelecer, no art. 1º, III, que sua dignidade constitui um dos fundamentos da República, assegurando, desta forma, absoluta prioridade às situações existenciais ou extrapatrimoniais”. (BODIN DE MORAES, Maria Celina. Na Medida da Pessoa Humana, estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2019. p. 21-22.)
2SCHREIBER, Anderson. Direito Civil e Constituição. São Paulo: Ed. Atlas, 2013. p. 18-22.
3AMARAL, Francisco. Direito Civil, Introdução. 5ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 333. No mesmo sentido, Caio Mario expunha que “fatos jurídicos são os acontecimentos em virtude dos quais começam, se modificam ou se extinguem as relações jurídicas”. (PEREIRA, Caio Mario. Instituições de Direito Civil. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 291)
4MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 18ª ed. Saraiva: São Paulo, 2012. p. 145.
5PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2008. p. 635.
6Ibid., p. 638-639.
7“Não existe, portanto, fato que não receba uma valoração expressa ou implícita do ordenamento. Há quem afirme a existência de fatos juridicamente irrelevantes: é uma teoria herdada do passado, da concepção do direito como garantidor das situações adquiridas, do ordenamento construídos somente por regras, e não por princípios. Os chamados fatos “juridicamente irrelevantes”, na verdade, ou são fatos relevantes (como o exercício da liberdade), mas não predeterminados a ter eficácia, ou não são fatos. A respiração de uma formiga não é um fato juridicamente irrelevante: simplesmente não é um fato”. (Ibid., p. 640)
8PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de Direito Privado. Tomo I, Parte Geral. Campinas: Bookseeler, 2000. p. 57.
9“A incidência é, assim, o efeito da norma jurídica de transformar em fato jurídico a parte do seu suporte fáctico considerado relevante para ingressar no mundo jurídico”. (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. Op.cit., p. 108.)
10Art. 2º – A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
11 “Em primeiro lugar, não se pode imaginar, no âmbito do direito civil, que os princípios constitucionais sejam apenas princípios políticos. Há que se eliminar do vocabulário jurídico a expressão “carta política”, porque suscita uma perigosa leitura que acaba por relegar a Constituição um programa longínquo de ação, destituindo-a de seu papel unificador do direito privado. O civilista, em regra, imagina como destinatário do texto constitucional o legislador ordinário, fixando os limites da reserva legal, de tal sorte que não se sente diretamente vinculado aos preceitos constitucionais, com os quais só se preocuparia nas hipóteses – patológicas e extremas – de controle de constitucionalidade. Tal preconceito o faz refém do legislador ordinário, sem cuja atuação não poderia reinterpretar e revisitar os institutos de direitos privado, mesmo quando expressamente mencionados, tutelados e redimensionados pela Constituição”. (TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Tomo I. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 18.)
12Assim, a solução normativa aos problemas concretos não se pauta mais pela subsunção do fato à regra específica, mas exige do intérprete um procedimento de avaliação condizente com os diversos princípios jurídicos envolvidos”. (BODIN DE MORAES, Maria Celina. Na Medida da Pessoa Humana, estudos de direito civil-constitucional, op.cit., p. 318.)
13“Muito se disputa acerca da terminologia empregada, especialmente no que concerne à inclusão dos atos ilícitos no âmbito dos atos jurídicos. Como bem destacado em doutrina, embora terminologicamente fosse preferível afastar a ilicitude da qualidade jurídica, consolidou-se, na linguagem corrente, a qualificação de jurídico não como atributo de legitimidade, senão como gênero, a traduzir simplesmente a eficácia jurígena independentemente de valoração positiva ou negativa”. (TEPEDINO, Gustavo. Esboço de uma classificação funcional dos atos jurídicos. Revista Brasileira de Direito Civil, Belo Horizonte, v. 1. jul./set. 2014. p. 16-17.)
14Pontes de Miranda classificava o ato jurídico strictu sensu em várias classes: reclamativos, comunicativos, enunciativos, mandamentais e compósitos. Sobre o tema ver a obra de MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. Op.cit., p. 200.
15“Afirma-se, por isso mesmo, que nos atos jurídicos stricto sensu ou atos lícitos de conduta, a vontade tem papel menos relevante, já que se limita a dar eficácia a interesses jurídicos previamente regulados por lei ou por negócio jurídico anterior”. (TEPEDINO, Gustavo. Esboço de uma classificação funcional dos atos jurídicos. Revista Brasileira de Direito Civil, op. cit., p. 20.)
16“Adotados de maneira bissexta pela doutrina brasileira, são imputáveis ao agir humano embora desprovidos do elemento volitivo, associando-se à atuação subjetiva tão somente por relação de causalidade, despida de qualquer exigência de intencionalidade ou mesmo consciência prática”. (Ibid., p. 21.)
17Para Miguel Reale, Direito seria: “a ordenação heterônoma, coercível e bilateral atributiva das relações de convivência, segundo uma integração normativa de fatos segundo valores”. (REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 67.)
18Ibid., p. 200.
19Ibid., p. 66.
20Ibid., p. 67.
21“Direito é a concretização da ideia de justiça na pluridiversidade de seu dever ser histórico, tendo a pessoa como fonte de todos os valores”. (Ibid., p. 67.)
22PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Op.cit., p. 639.
23“O simples fato de Tício entrar no carro e percorrer alguns quilômetros é juridicamente relevante, porque é manifestação de um valor, de um princípio jurídico, o da liberdade de circulação”. (Ibid., p. 639.)
24SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil: contemporâneo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 310.
25 “(…) qualquer fato social é percebido de acordo com a compreensão cultural da sociedade em determinado momento histórico, e assim também é valorado pelo direito. (…) O direito traduz a realidade fática, a qual, em contrapartida, reflete a valoração da ordem jurídica (como apreendida pelo grupo social)”. (TEPEDINO, Gustavo. Esboço de uma classificação funcional dos atos jurídicos. Revista Brasileira de Direito Civil, op.cit., p. 14.)
26 “Sem se limitar a criticar as soluções encontradas por outros, deve-se perguntar se é possível expor os problemas nos mesmos termos em que se apresentavam anos atrás e, no caso de resposta negativa, se as soluções já individuadas por outros ainda podem ser adotadas. (PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Op. cit., p. 139.)
27 “Todo fato social – porque potencialmente relevante para o direito, e porque moldado pela valoração (social decorrente) do elemento normativo (o qual, ao mesmo tempo, é construído na historicidade evolutiva da sociedade) — é fato jurídico”. (Ibid., p. 13.)
28Ibid., p. 12.
29Ibid, p. 641.
30“Indubitavelmente, a análise estrutural, sustentada pela técnica da subsunção, subjacente ao formalismo jurídico, poderia, inadvertidamente, proceder à aplicação quase automática dos efeitos do negócio jurídico, do ato jurídico em sentido estrito, ou do ato-fato jurídico, conforme o caso, sem levar em consideração quaisquer outros aspectos”. (REIS JÚNIOR, Antônio dos Reis. O fato jurídico em crise: uma releitura sob as bases do direito civil-constitucional. In: Revista de Direito Privado. v. 67/2016. jul./set. 2016. p. 37.)
31“(…) não depende mais exclusivamente de juízos puros de legalidade ou validade, mas também de juízos de merecimento de tutela na composição dos interesses protegidos e garantidos pela Carta Maior”. (Ibid., p. 30.)
32Ibid., p. 31.
33Ibid., p. 34.
34 “Fato jurídico a força motriz que impulsiona as relações jurídicas, cujo significado normativo é determinado não pela “natureza do fato”, isto é, se fato natural, se ato jurídico, ou negócio jurídico, mas antes pela composição, no caso concreto, dos interesses em jogo”. (Ibid., p. 35.)
35A título de fundamentação, importante recordar que Pontes de Miranda partia de uma análise detalhada dos fatos da vida que estariam, de alguma forma, aptos a ingressarem no campo jurídico — na teoria clássica, somente seriam enquadrados como fatos jurídicos aqueles que correspondessem aos suportes fáticos previstos nas regras jurídicas. Defendia-se, portanto, a aplicação da tão difundida técnica da subsunção.
36 “No caso concreto, conforme a função perseguida, mais próximo de ato jurídico em sentido estrito será aquele que impossibilitar ao declarante a oportunidade de escolher ou modular os efeitos jurídicos do ato. Noutra via, mais se aproxima de negócio jurídico aquela declaração que permitir à parte a determinação ou o ajustamento dos efeitos do ato, cumprindo a função do negócio, correspondente ao autorregulamento de interesses, em maior ou menor medida (…).
É a sua função que irá moldar o regulamento jurídico a ser aplicado na espécie, podendo variar caso a caso. Sendo assim, quanto mais próximo de negócio jurídico for o ato, maior a incidência dos arts. 104 a 184 do CC, com especial atenção ao controle de legitimidade do ato pela via das nulidades. Quanto mais distante de situação de autonomia, menor será a incidência das normas de controle a posteriori do ato, restando a análise dos requisitos gerais de validade de toda e qualquer declaração, como os requisitos gerais do art. 104 e o controle sobre os vícios de vontade. É esta a leitura que deve ser feita à expressão “no que couber” do controvertido art. 185 do CC. (REIS JÚNIOR, Antônio dos Reis. O fato jurídico em crise: uma releitura sob as bases do direito civil-constitucional. In: Revista de Direito Privado. Op. cit., p. 38-39.)
37LONGI, João Victor Rozatti; NOGUEIRA, Marco Aurélio. Teoria do Fato Jurídico: considerações sobre a doutrina da inexistência à luz da metodologia civil-constitucional. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 44, 2017. p. 25.
38REIS JÚNIOR, Antônio dos Reis. O. Cit. p. 45.
39SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil: contemporâneo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 319.
40 “Portanto, a norma constitucional não deve ser considerada sempre e somente como mera regra hermenêutica, mas também como norma de comportamento, idônea, a incidir sobre o conteúdo das relações intersubjetivas, funcionalizando-as aos seus valores. Isso significa dizer que a igualdade – formal e substancial -, a solidariedade e a dignidade da pessoa humana se tornam os parâmetros axiológicos da jurisprudência e de todo o aparato jurídico conceitual, estando aptos a fundar uma verdadeira revolução nos conceitos jurídicos próprios do direito privado e, sobretudo, na função atribuída a estes conceitos”. (BODIN DE MORAES, Maria Celina. Na Medida da Pessoa Humana, estudos de direito civil-constitucional. Op. cit., p. 29.)
41PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Op. cit., p. 657.
7. Referências bibliográficas
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MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 18ª ed. Saraiva: São Paulo, 2012.
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TEPEDINO, Gustavo; BARBOSA, Heloisa Helena; BODIN DE MORAIS, Maria Celina. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Revonar, 2006.